quarta-feira, março 26, 2008

A importância da análise na fase inicial da aprendizagem musical

A Análise é vista, por vezes, como a disciplina teórica em que o aluno aprende a identificar progressões harmónicas no papel, dividir uma peça em partes lógicas, complementando esta aprendizagem com uma prática composicional superficial – as técnicas de composição. Para tal é requerido que os alunos tenham uma formação musical anterior considerável, sendo este o curso básico (5º grau), no caso dos conservatórios em Portugal. A tardia inclusão da análise no processo de aprendizagem de um aluno pode fazer com que este, à priori, olhe para a disciplina com alguma desconfiança, uma vez que até ali o aluno foi capaz de tocar as obras que lhe foram pedidas, em muitos casos até com distinção, sem o recurso a esta disciplina. Esta perspectiva é reforçada nos casos em que o aluno se depara com uma realidade amplamente discutida nos textos escolhidos, um professor de análise que não consegue estabelecer nem transmitir uma utilidade prática do que é ensinado nas aulas com o quotidiano da prática musical do aluno.


A proposta de uma inclusão da análise numa fase inicial é feita unicamente com base na reflexão feita sobre os textos referidos na bibliografia, não pretendendo apresentar uma solução, ou indicar um caminho a seguir, mas somente levantar algumas questões que considero vitais à formação de um músico. Para se incluir a análise no programa do conservatório desde o início da formação seria naturalmente necessário debater amplamente a questão e formar professores nesse sentido. Todo este trabalho assentará, portanto, sobre a construção de uma realidade hipotética.


Inicialmente é necessário perceber o porquê da necessidade da análise na formação de um músico, essa necessidade deve ser compreendida, em primeiro lugar, pelo professor e, naturalmente, ser transmitida ao aluno. Tal como refere Wishart, o objectivo primordial do ensino da Harmonia, ou, neste caso, da análise, deve ser transmitir musicalidade. Para tal, e para combater um rótulo meramente teórico, é do meu entender que o ensino da análise e a formação auditiva, ou formação musical, são, ou deveriam ser, complementares e indissociáveis. Assim ambas poderiam ser leccionadas como uma só disciplina, até por razões de maturidade musical e consciencialização sonora, antes da divisão necessária feita numa fase mais avançada do estudo – na passagem do básico para o complementar no conservatório, por exemplo.


O professor de análise, ou de análise e formação musical, deve então partir do zero e fornecer ao aluno ferramentas que lhe permitam ouvir, identificar e compreender os fenómenos com os quais vai sendo confrontado. Os parâmetros escolhidos para abordar num primeiro contacto com a análise devem ser simples e claros, de preferência que sejam facilmente identificáveis em qualquer tipo ou cultura musical.


Conceitos como frase, parte, tema e forma podem começar a surgir, pode requerer-se que o aluno identifique um fim de frase ou de parte, apelando à identificação de repetições, sensações de final de parte sugeridas pelo encadeamento harmónico (cadências), etc. Para tal os primeiros exemplos devem ser manifestamente simples, podendo até partir-se de canções populares ou obras que sejam do conhecimento do aluno, como por exemplo, obras que façam parte do repertório ou do programa do aluno ou dos vários alunos. As obras a ouvir já incluídas no programa de formação musical do conservatório, quer para conhecimento de repertório por parte do aluno, quer as utilizadas para ditados ou para leitura, são igualmente válidas para o estudo da análise. Desta forma o aluno está em contacto com o mesmo material musical de perspectivas distintas, permitindo-lhe uma familiarização com o mesmo e consequente compreensão.

A utilização de exemplos de música real, defendida por vários autores, e com a qual eu concordo, deve ser um dos pontos-chave a considerar. Com isto o aluno começa a ser confrontado com a necessidade de articulação de conhecimentos que poderá transpor, mais tarde, para o que mais lhe convier, como é o caso da prática instrumental solo ou música de câmara. Estas beneficiarão da análise a partir do momento em que o aluno consiga identificar os parâmetros já aprendidos na música que este interpreta, mais ainda se esta identificação partir de uma curiosidade natural do aluno.


Outro dos benefícios para ambas as disciplinas é a prática real, nas aulas, do material que seja usado quer para as de formação musical, quer para as de análise, ou seja, todo o material de uma disciplina, inclui-se aqui o instrumento, coro e outras, pode e deve servir de material para estas. Esta prática real deve ser cantada e tocada no instrumento, assim que sejam adquiridas competências para tal.


Uma das grandes dificuldades com que se deparam tanto os alunos como os professores é, muitas vezes, a relutância com que o aluno encara a música pré ou pós-tonal. Neste caso as disciplinas teóricas referidas também podem ter um papel preponderante, no sentido já referido anteriormente que é o da transmissão de musicalidade. Ao colocar o aluno em contacto com música pré e pós-tonal, até mesmo com música eletroacústica e de outras culturas, este ficará familiarizado com as mesmas, sendo desta forma o acesso a estas feito através de um processo mais natural. Realço que é da minha opinião que este contacto deve conter em si uma contextualização feita pelo professor.


A questão recorrentemente abordada nas aulas de Didáctica da Música I e por diversos teóricos ao longo da História, referente à introdução de partitura no processo de aprendizagem musical, deve permanecer salvaguardada pela metodologia pessoal adoptada pelo professor, uma vez que a análise aqui sugerida pode ser feita auditivamente. A passagem para um suporte escrito deverá então ser feita consoante as competências do aluno, tendo sempre em conta a necessidade de uma capacidade de audição interna considerável para que a análise formal de uma peça, por exemplo, continue a ser uma análise auditiva e não visual. Nesta fase, tal como na leitura, quer instrumental, quer vocal, o aluno terá que fazer uma transição das competências adquiridas anteriormente, passando a identificar no papel, ou em ambos, os parâmetros já conhecidos pelo aluno. Numa primeira fase, e durante o tempo que for necessário, a partitura deve contar sempre com a audição do que está escrito, seja esta feita em gravação, seja tocada pelo professor.


À medida que o progresso se vai verificando e que o conteúdo programático se vai tornando mais complexo, no que diz respeito à harmonia, por exemplo, a iniciação à análise trará ao aluno benefícios. Com a aprendizagem e compreensão de novos conceitos, o aluno passa a desenvolver uma bagagem, tanto vocabular quanto teórica, que lhe permitirá saber identificar o que está a ouvir, quer quando ouve somente, quer quando toca, bem como saber o que está a fazer ou ouvir, em termos teóricos concretos.

Todo este processo poderá ainda contar com uma parte mais prática, mesmo sem sair do contexto da disciplina, com a inclusão de exercícios simples ao nível da composição, pequenas melodias, por exemplo, ou encadeamentos harmónicos a certo nível. Pode também recorrer-se ao sugerido por Humphreyes e fazer exercícios de improvisação no instrumento, orientados pelo professor. Assim, a disciplina de Análise e Técnicas de Composição, a seu tempo separada, mas não independente, da de Formação Auditiva, poderá concentrar-se mais na composição estilística, visto que o aluno também já desenvolveu algumas competências e experiência em composição.


Em síntese, a introdução de análise numa fase inicial de formação de um aluno de música pode trazer vantagens como: o desenvolvimento de musicalidade; o fornecimento do treino auditivo que permite um desenvolvimento e sentido de apreciação que será útil ao aluno como intérprete e como ouvinte; a possibilidade de compreensão de estrutura, forma e fraseado de uma obra; a possibilidade de uma compreensão musical geral, de obras específicas e de estilo que não é possível de outra forma; a possibilidade de contacto e familiarização com música pré-tonal, pós-tonal e de outras culturas; a possibilidade de aplicar o conhecimento adquirido de forma prática composicional, desenvolvendo a criatividade; o reforço do conhecimento prático com um conhecimento teórico, que, de outra forma, viria a fazer parte da formação do aluno numa fase tardia e desconexa da realidade que este estivesse a estudar no momento.

Sérgio Felix Mota - Aluno de Composição da Universidade de Aveiro (Excerto do trabalho escrito de Didática I, Janeiro 2008)


Bibliografia Usada

Alldahl, P.-G. & Alphonse, B. (1974) Teaching Music Theory: The European Conservatoire. Journal of Music Theory, 18(1), 111-122

Humphreys, J.T. (1986) Measurement, Prediction, and Training of Harmonic Audiation and Performance Skills. Journal of Research in Music Education, 34(3), 192-199

Wishart, P. (1962/3) The Purpose of Harmony Teaching. Proceedings of the Royal Musical Association, 89th Sess., 89-98

segunda-feira, março 24, 2008

Edwin Gordon - Testes de Aptidão ii

Foi dito já que os testes foram desenhados, elaborados, testados e validados com um fim, o de medir o grau de Aptidão Musical. Foi dito também que Gordon defende que com a devida orientação formal a aptidão musical pode desenvolver-se, estando apenas limitada por um limite temporal máximo, os 9 anos de idade.

No entanto, a discussão não está centrada na validade dos testes de Gordon, mas sim na utilização dos seus testes para um fim diferente do fim para o qual foram criados, testados e validados. E nesse outro campo, não pode ser reconhecida validade aos testes de Gordon, pelas razões apresentadas nos posts anteriores.

É, portanto, necessário desenhar, elaborar, testar e validar um outro instrumento de selecção , um que seja adequado para ser utilizado pelas escolas, conservatórios, academias... Até haver um teste com estas características será que devem utilizar-se os testes de Gordon para seleccionar alunos, visto estes terem sido testados e validados (mesmo que para outro fim)?

NÃO. Tal como não utilizamos um copo de cristal, por muito perfeito que seja para um fim outro que não o de acomodar um qualquer líquido (o copo foi elaborado e testado para esse fim), não faz sentido utilizar uma bateria de testes que foi desenhada e testada com o fim de medir aptidão musical para medir potencial de aprendizagem musical (e instrumental) para fins de selecção, numa escola de ensino especializado.

Para efeitos de selecção deverão ser utilizados (garantindo maior suscesso, mesmo que ainda não testados ou validados) testes que permitam aos avaliadores medir o potencial de progressão efectiva que aluno terá ao fim de alguns anos. E para este fim, tal como é reforçado pela bibliografia apresentada abaixo, mais importante do que a medida de aptidão de um aluno, devem medir-se as atitudes do aluno ao longo de um processo de aprendizagem, competências meta-cognitivas utilizadas, o grau de interesse e motivação apresentados perante dificuldades de aprendizagem, visto que são estes os dados que dão melhores garantias aos professores e à escola de como será o comportamento dos alunos ao longo da aprendizagem musical.



Brandler, S. & Rammsayer, T.H. (2003) Differences in Mental Abilities between Musicians and Non-Musicians, Psychology of Music, 31(2), 123-138


Davidson, J.W., Howe, M.J.A., Sloboda, J.A.
(1997) Environmental Factors in theDevelopment of Music Performance Skill over the Life Span. In Hargeaves, D.J & North, A.C. (Eds.), The Social Psychology of Music,
New York: Oxford University Press

Dweck, C.S. & Molden, D.C. (2005) Self-Theories: Their Impact on Competence, Motivation and Acquisition. In Elliot, A.J. & Dweck, C.S. (Ed.) The Handbook of Competence and Motivation. New York: The Guilford Press

Lamont, A., Hargreaves, D.J., Marshall, N.A. & Tarrant, M.
(2003) Young people’s
music in and out of school, British Journal of Music Education, 20(3), 229-241

Howe, M.J.A., Davidson, J.W. & Sloboda, J.A. (1998) Innate talents: Reality or Myth? Behavioural and Brain Sciences, 21, 399-442

McPherson, G.E. (1997) Giftedness and Talent in music. Journal of Aesthetic Education, 31(4), 65-77

Maehr, M.L., Pintrich, P.R. & Linnenbrink, E.A. (2002) Motivation and Achievement. In Cowell, R. & Richardson, C. (Eds.), The New Handbook of Research on Music Teaching and Learning.
New York: Oxford University Press

O’Neill,
S.A. & McPherson, G.E. (2002) Motivation. In Parncutt, R. & McPherson, G.E. (Eds.), The Science & Psychology of Music Performance. New York: Oxford University Press

Schultheiss, O.C. & Brunstein, J.C.
(2005) An Implicit Motive Perspective on Competence. In Elliot, A.J. & Dweck, C.S. (Ed.) The Handbook of Competence and Motivation.
New York: The Guilford Press

Sloboda, J. A. & Davidson, J.
(1996) The young performing musician. In Deliège,
I. & Sloboda, J. A. (Eds.) Musical Beginings. New York: Oxford University Press


Smith, B.P.
(2005) Goal orientation, implicit theory of ability, and collegiate instrumental music practice.
Psychology of Music. 33, 36-57

quinta-feira, março 20, 2008

Edwin Gordon - Testes de Aptidão

São os testes de aptidão desenvolvidos e testados por Gordon adequados para se elaborarem provas de admissão a escolas do ensino especializado?

A resposta clara e inequívoca é: NÃO.

As razões principais estão apresentadas nos últimos dois posts. O paradigma em que assentam os testes não é adequado visto que não leva em conta factores essenciais para o processo de aprendizagem, e o fim para o qual foram testados é muito específico e restrito (medição da aptidão musical segundo parâmetros muito específicos).

Além disso, se as razões apresentadas não fossem fortes o suficiente (como são), bastaria ler o que Gordon pensa acerca da utilização dos seus testes para seleccionar alunos. No seu site, Gordon é explícito ao dizer que os testes NÃO devem ser usados com este fim.

As suas palavras são: "It is NOT the purpose of aptitude testing to identify students for inclusion or exclusion in music activities."

Aqui fica o link para consulta.

Edwin Gordon e o paradigma da Aptidão Musical II

Edwin Gordon defende a realização dos testes de aptidão com o objectivo de ajudar os professores a determinar que elementos (ao nível do ritmo, melodia, harmonia...) necessitam ser reforçados no plano de desenvolvimento de aptidão de cada criança.

Se levarmos em conta que Gordon garante que a aptidão musical individual pode aumentar até ao limite máximo de 9 anos, então a realização dos testes de aptidão tem uma validade temporal reduzida. Visto que atingindo esta idade limite a aptidão musical individual estagna, nada mais podendo ser feito no sentido de a fazer desenvolver, pode-se então concluir que estes testes não têm qualquer validade se aplicados depois de as crianças atingirem os 9 anos de idade.

Se, como professores e pais, nos apegarmos a um paradigma que centra toda a sua força no potencial genético, corremos o risco de, confrontadas as crianças com problemas de aprendizagem e de aquisição de competências musicais, sermos tentados a atribuir a origem desses problemas à insuficiência de aptidão, nada podendo fazer para alterar o rumo dos acontecimentos, dando assim o primeiro passo para um processo que pode culminar na desistência.

No entanto, é preciso ter em conta que os processos de aprendizagem e de aquisição de competências (em música e não só) são muitíssimo complexos e não estão dependentes meramente dos valores obtidos nos testes de aptidão musical.

Factores como: 1. o grau de motivação para a aprendizagem, 2. a forma como os pais participam no processo de aprendizagem, 3. a relação da criança com a escola, o professor e o instrumento, 4. a forma como a criança se vê a si própria no processo de aprendizagem, 5. a relação da criança com a própria música (só para citar alguns), são tão ou mais importantes do que qualquer resultado extraordinário num qualquer teste de aptidão musical.

Mais do que discutir a validade dos testes (talvez num outro post), é necessário ponderar a validade do paradigma.
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